Pular para o conteúdo principal

Jardim Jupira: uma heterotopia (*) do medo iguaçuense


As fronteiras nacionais são fenômenos bem mais complexos, não se resumem a limites, divisas, tratados diplomáticos, nem podem ser simplificados como o lugar do narcotráfico e do contrabando. Não existe a fronteira em abstrato, o que existem são situações sociais e singulares de fronteiras. Alguns fenômenos podem ser generalizados para outros contextos fronteiriços e outros são específicos de uma dada configuração social. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 42).

            A cidade de Foz do Iguaçu limítrofe com os países do Paraguai e Argentina, possui população estimada em 263.915 habitantes, de acordo com dados do IBGE 2016. A construção da Ponte da Amizade que interliga Foz do Iguaçu no Brasil e Ciudad del Este no Paraguai, nas décadas de 1950-1960 significou um marco nas relações socioculturais e econômicas de ambas cidades.
             A difundida imagem da cidade de Foz do Iguaçu enquanto local turístico por causa das Cataratas das últimas décadas está atrelada à construção da empresa binacional Usina de Hidrelétrica Itaipu entre 1975 e 1982. De acordo com Aparecida Darc de Souza, docente na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, a construção, foi responsável pela alteração da estrutura urbana e da dinâmica social e econômica local, fator que promoveu uma rápida urbanização espacial (SOUZA. 2009; P.79).
            A não planejada urbanização resultou na configuração de espaços de ‘centrais’ e ‘periféricos’, atrelados aos aspectos econômicos e as delimitações sobre quem os ocupariam. Ao propor o estudo dos autores Gonzalez e Hasenbald (1982) considero a  analogia que fazem entre as condições atuais de vida da população negra nas periferias, e o passado vivenciado no estigma das senzalas. Assim, as favelas teriam sucedido as senzalas, e sempre nas margens, ou em regiões periféricas do centro, lá estão os “negros e seus locais”.
            O “lugar de negro” no tempo colonial correspondia ao não lugar do senhor – ou seja, à senzala, à cozinha ou o local de produção. Nas sociedades atuais esses espaços se converteram nas cidades dormitórios, favelas, fábricas escuras, mas é dentro das prisões, hospícios e cemitérios que a exclusão nega a esses sujeitos suas faculdades políticas (Gonzalez, L; Hasenbald,C. 1982 P15-16).
            O bairro do Jardim Jupira, ou favela do bolo como é conhecido, é um espaço periférico na sociedade iguaçuense, facilmente associado ao tráfico e ao comércio ilegal de mercadorias. Dada a proximidade com a Ponte da Amizade, não é apenas um local do encontro do nacional e internacional; mas é um local criado sobre o imaginário do medo, da violência e do perigo. Dessarte, os residentes desta fronteira sendo eles, imigrantes, indígenas ou negros pobres, estão a margem também das politicas eugênicas e xenofóbicas proposta pelo Estado. Os discursos midiáticos corroboram na  (re)produção da heterotopia do terror atrelado ao espaço.
            Também podemos considerar a relação entre centro e periferia enquanto um pensamento abissal da modernidade que pode ser traduzido pelo que chamou Boaventura de Souza Santos (2007) de dois universos destino, no qual a realidade estaria divida por linhas radicais. Contudo, essas linhas consistem num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis (SANTOS. 2007; P.1).
            O silêncio que continua sendo entendido estatalmente como cumplicidade, embora simbolize também um intento de seguridade interna e externa dentro da periferia. O Estado, por vezes, é o maior repressor nesses espaços. A realidade na periferia segue marcada pela frase que nos deixou o cantor e compositor Sabotagem: ‘a maior malandragem da vida é viver’.
          Como Albuquerque (2010, p. 42) bem exemplifica, fronteira não deve ser entendida apenas como delimitação territorial, e tampouco reduzida ao local do ilícito. Assim sendo, as linhas geográficas naturais ou criadas, não delimitam apenas os pertencimentos estatais no caso da região da Tríplice Fronteira, mas atuam como um sistema de divisões invisíveis, que quando baseadas em esteriótipos fundamentam a recusa do tido ‘outro’ seja ele internacional ou nacional.

(*) NOTA: Heterotopia, conceito foucautiano usado para se referir aos locais sobre os quais são projetados características duais, por vezes antagônicas.  Texto base do conceito -FOUCAULT, Michel. Outros espaços. Ditos e escritos, v. 3, p. 411-422, 2001.

Referências:
ALBUQUERQUE, José Lindomar C. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, p. 33-58, 2010.
GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo. Lugar de negro. Editora Marco Zero, 1982.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos-CEBRAP, n. 79, p. 71-94, 2007.
SOUZA, Aparecida Darc de. Formação econômica e social de Foz do Iguaçu: um estudo sobre as memórias constitutivas da cidade (1970-2008). 2009. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.


Raquel Santos Souza, Graduanda do curso de História - América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana

Postagens mais visitadas deste blog

A perspectiva na pintura renascentista.

Outra característica da pintura renascentista é o aprimoramento da perspectiva. Vejamos como a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais se refere ao tema: “Técnica de representação do espaço tridimensional numa superfície plana, de modo que a imagem obtida se aproxime daquela que se apresenta à visão. Na história da arte, o termo é empregado de modo geral para designar os mais variados tipos de representação da profundidade espacial. Os desenvolvimentos da ótica acompanham a Antigüidade e a Idade Média, ainda que eles não se apliquem, nesses contextos, à representação artística. É no   renascimento   que a pesquisa científica da visão dá lugar a uma ciência da representação, alterando de modo radical o desenho, a pintura e a arquitetura. As conquistas da geometria e da ótica ensinam a projetar objetos em profundidade pela convergência de linhas aparentemente paralelas em um único ponto de fuga. A perspectiva, matematicamente fundamentada, desenvolve-se na Itália dos séculos XV e

"Progresso Americano" (1872), de John Gast.

Progresso Americano (1872), de John Gast, é uma alegoria do “Destino Manifesto”. A obra representa bem o papel que parte da sociedade norte-americana acredita ter no mundo, o de levar a “democracia” e o “progresso” para outros povos, o que foi e ainda é usado para justificar interferências e invasões dos Estados Unidos em outros países. Na pintura, existe um contraste entre “luz” e “sombra”. A “luz” é representada por elementos como o telégrafo, a navegação, o trem, o comércio, a agricultura e a propriedade privada (como indica a pequena cerca em torno da plantação, no canto inferior direito). A “sombra”, por sua vez, é relacionada aos indígenas e animais selvagens. O quadro “se movimenta” da direita para a esquerda do observador, uma clara referência à “Marcha para o Oeste” que marcou os Estados Unidos no século XIX. Prof. Paulo Renato da Silva. Professores em greve!